Ás vezes pergunto-me se certas recordações são realmente minhas, se não serão mais do que lembranças alheias de que eu tivesse sido actor inconsciente e das quais só mais tarde vim a ter conhecimento por me terem sido narrados por pessoas que, por momentos, foram transeuntes na minha vida, meros “amigos de curta-duração”. Pedaços de uma existência ignorada que depois chocam com os minutos que fazem parte da minha vida.
Ás vezes pergunto-me se serei o único que sofre desta patologia não reconhecida pela comunidade médica, se serei o único adormecido, se serei a única vítima deste sonambulismo social.
“Possuir a nossa vida”, que conceito tão estranho. O que é a vida primeiramente? Se ela realmente é algo, será que a controlamos? Mas não, devo parar de pensar nisto, tenho de parar. Parar. Porque estarei eu a especular sobre algo tão distante e tão pouco concreto quando tenho coisas com que me preocupar mesmo aqui ao lado? Por exemplo a senhora que tosse intensamente, uma senhora de aspecto reles e sofrido, que tosse e tosse, cospe todos os seus pecados.
Será que também ela se sente como eu? Ou será que a sua vivência sofrida a encaminha para uma ignorância anestesiante? Quase que aposto que sim, que ela ignora isto. Por isso penso eu nisto, substituindo o seu lugar. Na verdade, todos nós fazemos parte de uma sociedade, quer queiramos, quer não e por isso temos as nossas funções, o nosso lugar neste mundo insípido. E eu não descuro tamanha posição e agora questiono-me: porque raio perdemos essas recordações? Isto é, se é que alguma vez as perdemos. Talvez seja tudo uma invenção, não sou a primeira a pensar nisto, muitos outros com a mesma função também o fizeram. Talvez estas recordações seja um meio para algo de maior, podem ser um método de tortura emocional ou de simples complementação fazendo com que tudo em nós mude, gerando sentimentos de culpa ou de orgulho, de ódio ou de amor que não desaparece.
Decido considerar as minhas recordações: são recordações que me partem o coração, que me inundam de saudade e que lenta e dolorosamente me sugam o espírito. Recordações que eu teimei em esquecer e que agora são trazidas de volta. Desejei tornar-me indiferente, mais um filho do meio de Deus, ansiei nada em busca de uma medíocre realização pessoal. Decidi esquecer as loucuras de outrora para me poder completar agora. Mas não, o passado não deixa, acorrentado ao meu pé, ele não me larga, arrasta-se, sinfonia mutiladora.
Não!
Pára!
E agora sim, o silêncio interior.
Junto-me à senhora, que continua a cuspir toda a sua vida por aquela boca infeccionada pelo tempo, e respiro a ignorância apaziguadora, rejubilo no vazio mental.