4.12.06

Pinheirinho cintilante que brilha e brilha com lâmpadas de 10 watts.

Energia iluminadora, criadora de sorrisos e conforto… Algo etéreo que percorre as duras e frias paredes, aprisionada em cabos de plástico submersos no cimento.

Luzes que acendem e desligam no leito de morte do pinheirinho, crianças que correm em sua volta como bruxas enlouquecidas.

Não, não me vou focar (e peixar, não?) no pinherinho e na sua tortuosa morte mas sim num certo senhor que observava tudo isto. Este senhor chamava-se Bóris e encontrava-se, impassível, por detrás da janela vendo todo aquele estranho rito. Tudo aquilo lhe parecia ingenuamente macabro, como se de repente os unicórnios começassem a comer ratos.

Decidiu acabar com tudo aquilo e cortou os cabos de electricidade da outra casa. Finalmente a luz era livre! Os tétricos "unicórnios” exclamaram “oh!” e aí Bóris sentiu-se realizado e, enquanto caminhava para o seu cadeirão, pensou “isto sim, é espiríto natalício!”

A chuva começou a bater no vidro, que nem uma estranha e distorcida sinfonia. Ele relembra tempos idos, em que o Inverno não existia, apenas a amena e colorida Primavera. Bóris nunca havia percebido como tamanha mudança meteorológica se havia abatido sobre a sua brilhante careca, como a chuva tinha começado e o sol eclipsado…

Há 7 anos atrás, malas foram prostradas à sua porta. As mãos finalmente descansavam depois da longa caminhada… Bóris estranhou esta nova hóspede cujos cabelos brilhavam por debaixo dos fortes raios de sol (teria a primavera voltado?). Por entre os dedos da mão esquerda, que ela massajava continuamente, um cigarro pendia de modo indolente. Bóris inalava aquele cheiro enquanto se perguntava como é que alguém como ela decidira viver numa casa cujas paredes eram forradas a móveis de fórmica. “Estranho facto…” pensou ele, mas logo alguém lhe respondia dentro da sua cabeça “Bóris, esquece isso!”

Os dias que se seguiram foram um choque para Bóris: o silêncio matinal, um habituè naquela casa, tinha sido substituído pelos gracejos (seriam cantigas?) dela durante o seu banho. Ela tinha uma certa predilecção pelas músicas que o homenzinho cego da esquina cantava, Bóris tinha reparado nisso quando finalmente começou a prestar-lhe atenção quando passava por ele a caminho do emprego.

Certo dia, ela chegou a casa com uma nova aquisição, um rádio branco Grundig. O suposto choque de Bóris era agora algo normal naquela casa; aquele ser fascinante que, todos os dias, o surpreendia de certo modo. Ele sentia-se um abutre, como se estivesse a devorar toda aquela alegria de viver que, lentamente, o contagiava. Por vezes, no fim de um serão embalado com uma boa garrafa de whisky, ele juntava-se a ela nas suas estranhas danças ao som de música cubana. Ela dizia-lhe sempre “Bóris, tens de te soltar, deixa-te levar” enquanto lhe agarrava as ancas e obrigava a mexer-se.

Semanas passaram-se e a Primavera não findava, para sua grande felicidade. Whisky era um bem sagrado naquela casa assim como aquele grande rádio Grundig. O sol sempre os iluminava mas uma semana as nuvens vieram e não mais foram embora. 33 cartas ao longo de 7 dias, todos os dias ela as abria e de todas as vezes chorava. No entanto ela nunca se soltava, pelo menos, com Bóris. Apenas o fazia com o whisky e os cigarros. Todos os dias receava chegar a casa e ela já lá não estar. Ao 7º dia esse seu medo tornou-se realidade e a única coisa que restava eram folhas secas no chão do seu quarto e vento a entrar por entre as portadas abertas. E assim findou a primavera e o Inverno veio e não mais houve menina da meteorologia durante o telejornal da noite.


Actualmente, na estação do Outono, Bóris Serôdio é um jovem arquitecto de 55 anos que goza de uma saúde invejável.
É viuvo quase desde o primeiro dia que se casou, e é devido a este infortúnio que não tem descendência e se tornou uma pessoa pouco dada a relações sociais.
Devido à sua constante necessidade de viajar, aos pouco foi-se despegando da sua família, já não os contacta nem conta com eles, é como se não existissem.
Para além de ser um viajante compulsivo, é um leitor voraz, viciado em música e um coleccionador obsessivo, que sempre que pode, traz artefactos ligados à cultura do país que visitou.
É uma pessoa de poucas palavras, mas não deixa de ser um excêntrico, a rotina do dia-a-dia aborrece-o, tem a necessidade de se confrontar com a normalidade em redor para se afirmar que afinal está vivo.
Gosta de passar a maior parte do seu tempo sozinho (com a sua caneta bailando entre o dedo indicador e o anelar), mas não vive na solidão, tem os seu amigos: outros coleccionadores de arte que esporadicamente ele os convida para exibir os seus novos troféus.
Um pormenor curioso: ouvir e ver cair a chuva inspiram


(baseado no perfil do arquitecto Bóris Serôdio, fielmente reproduzido no último excerto de texto e integralmente escrito por Ivan Pereira. O restante texto foi escrito na aula de Português, numa folha perdida de um bloco de croquis A3).



Música : Long Haired Child (Devendra Banhart)

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